Era um trabalhador. Caíssem em chuva todas as nuvens do céu, ou queimasse o sol as flores dos vergeis, nada o afastava da rotina impassível do seu viver. À noite, voltava suado, mas alegre: cansado, mas satisfeito. A esposa esperava-o sempre com o café coado de fresco, morno, cheiroso, entrando pelas narinas, gostosamente...
E quantas vezes, nas noites de lua, saía Serafim para trabalhar? Aquele pedaço de terra cultivada era a sua maior obsessão. Quando a chuva caía, na sua ablução solícita e universal, limpando as folhas, aguando as flores, molhando tudo, então era uma festa. Mas, ai dele se a chuva era demais... As gotas esparsas iam chegando formando poças, gerando regos que se enfureciam na transposição de sua grandeza efêmera. Iam por ali afora, pelo campo, pelo seu mundo, cavando o chão, arrancando dolorosamente numa insensibilidade amarga as mandiocas promissoras e os canaviais verde-amarelos.
Mas não desanimava nunca. E no fim do ano tinha sempre o dinheiro para pagar ao senhor de engenho o arrendamento do “terreno”, e pela festa não faltavam nunca roupas novas para os dois - ele e Madalena - romperem o ano novo.
Mas um dia - e era dia de festa - ele foi à cidade com um amigo. Entrou num botequim; anuviou o cérebro com copos de álcool. Conheceu o hálito de mulheres damas de olhar preguiçoso. E essas mulheres estranhas e mal pintadas, pareceram-lhe muito mais bonitas e irreais aos seus olhos ébrios, desacostumados com aquilo tudo. Dançou mal - era a primeira vez - no botequim, numa dança que era bem mais uma consagração mascarada à orgia e ao pecado. Fez palhaçadas. Mas os outros não sorriram dele. Os mais espirituosos ditos, não fazem sorrir duas vezes do mesmo modo. Como sorrir diante do espetáculo de Serafim, se era o espetáculo de séculos com cenários diferentes e com outro palhaço? Naquele botequim, em todos os botequins, um noviço no postulado da orgia sem freios, passa sempre, insensivelmente, por todas as provas degradantes, com uma alegria louca. Essa alegria vai aos poucos cedendo lugar a um tédio sem par; e os velhos freqüentadores dos centros da prostituição do corpo e do espírito, são entediados perenes.
* * *
Tarde da noite, Serafim voltou. Seu companheiro, mais afeito ao álcool, trouxera-o para casa. A esposa chorava, e ele zangou-se: não queria tristezas... E foi se deitar cantando...
O sol raiou numa aurora pomposa, brilhante, toda rósea. Serafim já se levantou há muito, e fugiu para o campo como que a procurar um alívio para os membros cansados.
Sorveu o ar sequiosamente; banhou-se no rio e sentiu-se melhor com a carícia das águas frescas e reconfortantes como um dia novo. Ah! Certamente era aquilo que lhe faltava. Como se sentia melhor agora! Até pensara que estava doente. Mas, aquela opressão interior, aquela espécie de abafo, aquela impaciência enorme era sujo, só sujo...
A noite anterior parecia-lhe agora irreal. Não sentia remorso, entretanto. Sentia, sim, a curiosidade de viver novamente noites assim ao invés de ficar em casa preguiçosamente... E desculpava-se resmungando: preguiça é pecado!
Lembrava-se vagamente dos olhos chorosos da esposa. Sentia às vezes o aviltamento da culpa, para depois sentir-se grande na sua liberdade. Travou-se a batalha interior entre anos de trabalho persistente e um dia de orgia vã. Pensou, fraquejou, cambaleou, e precipitou-se como um bólido na tabidez das tascas prostibulares.
Dias correram, e seu trabalho já não tinha mais a energia criadora dos dias de outrora. As plantações ressecavam-se, amareleciam, e pareciam morrer. Mas era necessário trabalhar, precisava ter dinheiro para gastar. Uma força nova apoderava-se dele, que se precipitava de novo no trabalho. Ah! Queria gozar a vida! E ele a tivera tanto tempo ali, tão pertinho, boa e sorridente, sem descobri-la...
Sua esposa não tinha mais dele os cuidados de outrora: na última festa, não tivera um vestido novo para celebrar esta festa de todo o mundo, o Ano Novo. E num despeito todo feminino, foi sentindo aos poucos um desejo insensível e quase inconsciente de se vingar à sua maneira daquele descaso. E não era sem intenção que ela correspondia aos olhares do Juvêncio, caboclo forte, capanga do Coronel Silva, do engenho Comprido, afeito às correrias nas campinas verdes, que aliava à coragem indomável brincadeiras por vezes pueris. Já se apeara mais de uma vez do seu cavalo malhado à porta de Madalena para beber água... E ela na sua intuição de mulher, bem que adivinhava as intenções do Juvêncio, e via que ele não tinha sede, enquanto as conversas e os olhares entre eles iam aumentando.
* * *
A Cruz das Almas, debaixo da jaqueira grande no meio da estrada, criara na mente daquele povo a crendice secular do mal-assombro. E já se haviam contado inúmeras histórias de almas penadas, tétricas e arrepiantes.
Era por lá que passava o Serafim numa noite, quando ouviu, de um lugar qualquer no fundo negro da escuridão, uma voz exageradamente fanhosa inquirir-lhe: “Donde vem, irmão?” Serafim, abstrato, recordando-se dos momentos na taverna de “seu” Raimundo, nem se lembrava da lenda de ser aquele lugar mal-assombrado: e respondeu distraidamente: “Venho da vila...”. E continuou sua marcha no caminho.
No outro dia, repetiu-se o incidente. E assim nove dias passaram-se. Serafim já respondia maquinalmente àquela ignota interpelação quotidiana. Naquele dia, porém, foi diferente. A noite estava mais escura do que nunca e a estrada era um halo longínquo de luz. Os sapos coaxavam nas poças turvas e nos troncos carcomidos. Morcegos passavam de raspão no seu rosto suado, fazendo-o soltar imprecações idiotas. Um roedor qualquer roçou pelas suas pernas moles, fazendo-o saltar de susto, e tremer o corpo todo. Foi assim que ele chegou à Criz das Almas. E mais uma vez a voz de sempre surgiu invisível de entre as sombras: “Donde vem, irmão?”
Mas Serafim, desta vez, estava nervoso; os elementos invisíveis da noite conspiravam todos contra seus nervos cansados. E foi com a voz irritada que respondeu: “Ora bolas! Dane-se”. Antes não dissesse nada.
Sentiu-se quase que imediatamente seguro pelas orelhas em fogo, enquanto a voz fanhosa e monótona repetia: “Vai à vila... vem da vila... vai à vila...”, jogando-o como um maracá ao ritmo sem cadência de suas palavras. Foi jogado ao chão violentamente. Perdeu a noção de tudo, e desatou a correr como um louco pela estrada afora, cabelos ao frio da noite, pés descalços, as orelhas sangrando...
Chegou em casa. Bebeu água, e quase parte o copo, com o corpo todo tremendo. Sentou-se em um tamborete grosseiro para se acalmar. Lá fora a chuva começou a cair grossa, violenta. Um relâmpago arranhou as nuvens, e denunciou as goteiras do telhado, iluminando-as. Um cavalo passou solitário no caminho, trotando, salpicando lama.
* * *
No outro dia Serafim voltou ao antro do vício.
E agora, o sino da Matriz acaba de anunciar a meia-noite. A cidade toda ressona docemente, e no botequim de “seu” Raimundo dão vivas a Serafim que agora é mesmo homem de coragem: só irá para casa de madrugada. E enquanto ele treme de orgulho imbecil, com medo de passar na estrada àquela hora, sua esposa, sentada junto a um tronco de mangueira, olhando o crescente através das folhas finas e entrelaçadas, conversa com um homem, o Juvêncio:
- E você tem certeza de que ele não volta agora?
- Toda a certeza.
- Quando eu me lembro de como ele chegou ontem, até me dá vontade de rir...
- Ele quase morre de medo, hein?
- Ora se... E eu fazendo que estava dormindo.
- Veja só... Eu nunca pensei em ser fantasma!
E o colóquio continua.
Ao longe, um violão dedilhado delicadamente, espalha pelas solidões das matas e dos caminhos, notas sentimentais, parecendo envolver aquilo tudo numa evocação dolente e impressionável...