Corria o mês de julho do ano de 1924. Na pequena Vitória de Santo Antão, cidade do interior de Pernambuco onde todos se conheciam, a edição mensal do jornal A Cruz causou comoção. Os leitores já sabiam das noticias ali veiculadas. Mas vê-las impressas, pelo contraste ali contido, teve outro peso. Na página 3, era comunicado o nascimento de Osman e, no verso, o falecimento de sua mãe, ocorrido dezesseis dias após complicações decorrentes do parto.
Coube à ama de leite Rosa, logo providenciada pela família, amamentar o recém-nascido. Osman sempre a visitava e demonstrava um profundo carinho por sua “Mamãe Rosa”, como a chamava, e a ela dedicou “O Visitante”, seu livro de estreia: “À minha Rosa”, dando também seu nome a uma personagem do romance. Maria da Paz, morta aos 18 anos, deixou mais de duzentas poesias escritas que foram destruídas pouco depois de sua morte, por trazerem lembranças quase insuportáveis ao viúvo devastado. Meros devaneios de uma adolescente sonhadora? Ou poemas de grande valor literário? Infelizmente jamais saberemos.
Joana Carolina, avó paterna do escritor (que enviuvara em 1902, aos 28 anos e com quatro filhos), fez o que pôde para consolar o filho Teóphanes, e tomou a si a criação e educação do neto, juntamente com sua filha Laura e o marido desta, Antonio Figueiredo. Este, com as muitas histórias que lhe contava, incutiu no sobrinho o gosto pela narrativa. E Joana Carolina, professora aposentada, tornou familiar ao neto o universo da escrita e da leitura. Quando começou a frequentar o Ginásio de Vitória, na década seguinte, o pequeno Osman já sabia ler e escrever com correção. O olhar treinado do professor José Aragão percebeu a facilidade de expressão e a paixão do aluno pelas palavras, incentivando-o a escrever e o orientando em suas primeiras leituras.
Aos oito anos, escreveu seu primeiro poema, “Beduíno Regenerado pela Lua”. Foi criticado pela ausência de métrica e rima, mas isso não o desestimulou. Continuou escrevendo.
Muitos anos depois, já adulto, perguntado numa entrevista sobre as dificuldades do escritor, respondeu: “Encaro-as com obstinação, com punhos e dentes cerrados. Arremeto para a frente e, de um modo ou de outro, queiram ou não queiram, deixarei a minha marca.” Qualquer tipo de repressão o incomodava sobremaneira, e a ditadura militar, que o atingiu de forma muito próxima, exacerbou sua luta pelos direitos humanos, pela liberdade de expressão e pela justiça social, dando tons mais vivos e fortes a seus textos em periódicos e em sua ficção. Lutava, lutava sempre para melhorar um pouco a realidade sombria do país. Recusava eventos de literatura promovidos pelo governo, porque queria manter a sua liberdade de protestar. Totalmente independente, jamais aceitou qualquer influência externa para divulgar o seu trabalho, inclusive no exterior. Ele dependia apenas do seu talento e do seu esforço. Foi o primeiro escritor brasileiro inscrito no site do Conseil International des Archives – Paris.
Aos 17 anos, quando da transferência de Vitória de Santo Antão para Recife, Osman já levava na mala seus primeiros contos, logo publicados nos jornais locais. Os dois primeiros foram “Menino Mau” e “Fantasmas…”, aqui transcritos. Posteriormente, sem necessariamente obedecida a ordem cronológica, transcreveremos seus outros contos, artigos, poemas, crônicas e críticas literárias, publicados em diversos meios de comunicação, de 1941 até 1978.
Ainda adolescente, firmemente decidido a tornar-se escritor, Osman Lins submeteu-se a concurso no Banco do Brasil. Com expediente só à tarde e tendo as manhãs livres, o banco também lhe daria relativa tranquilidade econômica, podendo se dedicar à sua verdadeira vocação, o ofício da escrita. Sendo menor de idade, seu pai teve de assisti-lo, quando da posse do cargo no banco.
Aos 20 anos matriculou-se em um curso de dramaturgia e continuou colaborando com os jornais locais em suplementos literários, com crônicas, ensaios, críticas, poesias, além da produção e direção de programas culturais para rádios de Recife.
Escrevia crônicas diárias para o programa “Alô, amigos!” e adaptou obras de Shakespeare, Machado de Assis, Katherine Mansfield, dentre outros.
No ano de 1946, conclui o curso de Finanças na Faculdade de Ciências Econômicas do Recife e casa-se com Maria do Carmo de Amorim Araújo, com quem teve três filhas. Continua com intensa atividade literária, acumulando prêmios em concursos, a exemplo de seus contos “A doação”, “O Eco” e “Os sós”. Sua peça “O Vale sem Sol” obtém destaque especial no concurso Cia. Tônia-Celi-Autran (1957). Publica poesias, como “Instante”, “Lamentação Tranviária”, “A Corola”, “A Imagem”, “Sonetinho Ingênuo”, “Poema Sobre a Melhor Maneira de Amar”, “Serenata Recifense para Cacilda Becker”, “Soneto do Oferecimento”, “Soneto Arquitetônico”, entre outras, e inaugurou a coluna “Carta do Recife”, título logo substituído por “Crônica do Recife”. Nessa altura, Osman Lins já tinha escrito dois romances, “Noite Profunda” e “Os Espelhos”, que nunca publicou porque os considerava apenas exercicios de escrita, treinos para um salto maior.
Ainda residindo no Recife, também colaborava para o jornal O Estado de São Paulo, onde em 1958 publicou os primeiros artigos inconformistas e combatentes. Enquanto isso, ia escrevendo contos e arrebatando prêmios, em concursos de âmbito local e nacional. Em 1955, foi lançado seu romance de estreia, “O Visitante”.
Perfeccionista, Osman estudava e planejava meticulosamente cada trabalho. A título de exemplo, quando da escrita de Guerra sem Testemunhas, ele escrevia, simultaneamente, duas obras: o livro em si e o diário da obra.
Aos 36 anos, em 1961, reside por seis meses na França, como bolsista da Aliança Francesa, onde teve acesso, in loco, ao “noveau roman”. Falando francês fluentemente, durante o semestre foi correspondente teatral crítico para o Jornal do Commercio. Durante essa viagem, houve a estreia, sem sua presença, da peça “Lisbela e o Prisioneiro”, laureada com o prêmio Concurso Cia. Tônia-Celi-Autran e o lançamento do romance “O Fiel e a Pedra”, também premiado pela União Brasileira de Escritores – Recife. Da experiência europeia surgiu “Marinheiro de Primeira Viagem” e, em 1971, começa a ter sua obra publicada no exterior.
De volta da França, fixa residência em São Paulo com a mulher e as filhas, contraindo segundas núpcias com Julieta de Godoy Ladeira, depois da separação.
Em 1970, paralelo ao trabalho literário, assume a cátedra de Literatura Brasileira na Faculdade de Filosofia e Letras de Marília, São Paulo; e em 1973, obtém o título de doutor em Letras pela mesma faculdade, com a tese “Lima Barreto e o Espaço Romanesco”, o que o leva a escrever, apaziguado, para seu grande amigo Lauro de Oliveira, em 11 de dezembro de 1973: “…estou consagrando a manhã de hoje à atualização de minha correspondência. Explica-se. Ontem, 10, defendi em Marília minha tese de doutorado, sendo aprovado com distinção, por unanimidade. A arguição teve a duração de quase cinco horas e a banca, além de Alfredo Bosi, meu orientador, teve como participantes Antonio Cândido, João Alexandre Barbosa, Nelly Novaes Coelho e uma professora de Linguística, Maria Teresa Biderman. Seu amigo, agora, é Doutor em Letras. E não mais um bacharel em Ciências Econômicas, o que era um disparate total e me chateava muito. Naturalizei-me, por assim dizer…”
Suas aulas eram muito enriquecedoras e ele as gravava, mas depois de três anos, desliga-se da faculdade, desiludido e sentindo-se impotente. Difícil encontrar quem, como Osman Lins, se dedicou com tanto afinco à sua profissão. Questionava-se sempre acerca de seu ofício como escritor e de seu papel no mundo; e se estava dando o seu melhor aos seus leitores. Percebia o que denominava de “o sentido profundo do ato de escrever” e conheceu o que ele chamava de “alegria de escrever”: “Não trocaria isso por nada. Tudo que entendo na vida, minhas relações, minhas amizades mais profundas e enriquecedoras, tudo isso veio através da literatura. A gente estende laços em direção àqueles que são nossos irmãos no mundo. Atuamos numa sociedade que em conjunto é hostil ou indiferente ao nosso trabalho. Mas como descrever a alegria de, nos momentos mais inesperados, descobrirmos um leitor atento? E a coisa é tão forte que vence as barreiras da tradução. Tenho encontrado, mesmo em leitores estrangeiros, reações que não estão longe da ternura. Já pensou no significado disso? Um ser humano chegando a outro, ao coração de outro ser humano, passando por cima de todas as barreiras, inclusive as barreiras de ordem linguística. Quem mais, senão o artista, conhece essa alegria?”
Em um mundo hostil e indiferente, e onde os valores nos quais ele acreditou e pelos quais viveu são em boa parte esquecidos, que o seu nome seja um magnífico estandarte a ser levantado e seguido pelos que quiserem trilhar caminhos menos fáceis talvez, mas dignos e honrosos. Caminhos capazes de conduzir a locais de menos sombras, ou onde essas sombras possam se transformar em luz para alguns. Para muitos.
Osman Lins adormeceu na manhã de 8 de julho de 1978 e não mais acordou, vencido por um câncer. Perdeu, assim, sua última batalha.